Delação
anônima: os requisitos para sua admissão no processo penal
Imagine
a situação. Você descobre que seu vizinho é um criminoso de alta
periculosidade, foragido da Justiça e, além de tudo isso, amigo de
policiais corruptos. Você decide denunciar o paradeiro do bandido,
mas será que faria isso se tivesse que se identificar?
Ir até
a polícia e noticiar o ocorrido pode ser uma sentença de morte.
Nesse contexto, nasce naturalmente a delação anônima, uma
eficiente ferramenta a serviço da sociedade. Importância que se
evidencia na criação e implementação, cada vez maior, de
instrumentos como o disque-denúncia.
Esse
pensamento, entretanto, não é unanimidade no universo jurídico.
Alguns operadores do direito questionam a legalidade da denúncia
anônima. Como argumento, recorrem ao artigo 5º, inciso IV, da
Constituição Federal, que prevê a livre manifestação do
pensamento, mas veda o anonimato.
A
jurisprudência tem mostrado, contudo, que, ainda que existam
divergências sobre a constitucionalidade ou legalidade da delação
anônima, a sua admissão no processo penal depende, exclusivamente,
de uma questão procedimental adotada durante a investigação.
Inquérito
policial
O
procedimento investigativo tem início com a notitia criminis, que é
a maneira como a autoridade policial toma conhecimento de um fato
aparentemente criminoso. Quando a autoridade recebe uma denúncia de
terceiros, fala-se em delatio criminis.
Na
delatio criminis, qualquer pessoa do povo pode denunciar, mesmo que
não esteja envolvida com a situação. Caso a denúncia seja
anônima, estaremos diante de uma delatio criminis inqualificada.
Ao
receber a denúncia anônima, a autoridade policial terá que se
convencer, primeiro, da veracidade dos fatos narrados e isso é feito
por meio das investigações preliminares que deverão ser realizadas
antes da abertura do inquérito. Convencida de que há indícios de
infração penal, a autoridade deverá, então, dar seguimento ao
procedimento formal.
Nos
julgados do Superior Tribunal de Justiça (STJ), é possível
observar que, uma vez seguido esse procedimento, não há que se
falar em inconstitucionalidade da delação anônima.
Confirmada
a justa causa, ou seja, indícios de autoria e materialidade do
crime, o delegado de polícia deverá, então, instaurar o inquérito.
O que não se deve é determinar a imediata instauração deste sem
que seja confirmada a verossimilhança dos fatos.
Diligências
preliminares
Em
recente julgamento de habeas corpus, a Quinta Turma do STJ analisou o
caso de um réu denunciado por tráfico de drogas mediante delação
anônima (HC 227.307).
Nas
investigações preliminares, foram realizadas interceptações
telefônicas que confirmaram a denúncia. A defesa, entretanto,
alegou a nulidade da ação porque a interceptação telefônica
teria sido proveniente de denúncia anônima, sem prévia
investigação e sem a devida fundamentação.
A
Turma negou o pedido. Em suas argumentações, a desembargadora
convocada Marilza Maynard, relatora, disse não ignorar que a
investigação não pode ser baseada exclusivamente em denúncia
anônima, mas observou que, “do pedido de quebra de sigilo
telefônico, formulado pela autoridade policial, extrai-se com
facilidade que foram realizadas diligências preliminares objetivando
averiguar a verossimilhança das denúncias anônimas recebidas”.
Operação
Albatroz
Outro
exemplo bastante conhecido, e que deixa evidente essa posição da
Corte a respeito da admissão da denúncia anônima, foi o caso
da Operação
Albatroz,
deflagrada em agosto de 2004, que desbaratou uma quadrilha acusada de
fraudar licitações em Manaus (HC 38.093).
Uma
denúncia anônima revelou todo o esquema fraudulento à polícia.
Diversos procedimentos, como quebra de sigilos telefônicos e
bancários, foram adotados e a polícia conseguiu reunir farto
material incriminador.
Para o
ministro Gilson Dipp, relator do processo, não se pode falar em
inconstitucionalidade do procedimento por ter sido deflagrado após
uma delação anônima, porque esta não foi a condição
determinante para a instauração do inquérito, mas sim o que foi
apurado durante a investigação preliminar.
É o
que também sustenta o ministro Og Fernandes. Para ele, uma forma de
tornar harmônicos os valores constitucionais da proteção contra o
anonimato e da supremacia da segurança e do interesse público é
admitir a denúncia anônima “desde que tomadas medidas efetivas e
prévias pelos órgãos de investigação, no sentido de se colherem
elementos e informações que confirmem a plausibilidade das
acusações anônimas”
(HC
204.778).
Dever
de agir
A
ministra Maria Thereza de Assis Moura destacou ainda, em processo de
sua relatoria, que a autoridade policial tem o dever de apurar a
veracidade dos fatos. Então, uma vez que a autoridade pode agir de
ofício, o anonimato se torna irrelevante se o resultado das
diligências efetuadas apontarem justa causa (REsp 1.096.274).
Se
todos os procedimentos de investigações preliminares forem
executados de forma correta, à luz da legislação, e os fatos
apurados de forma consistente, a origem da denúncia não terá
importância, pois a autoridade policial terá o poder-dever de
agir.
Recurso
eficiente
Foi
graças a uma denúncia anônima que a polícia prendeu o último
suspeito de participar da morte da dentista Cinthya Magaly Moutinho
de Souza, queimada viva em São Bernardo do Campo (SP), no final de
abril.
Também
foi depois de uma denúncia não identificada que a polícia do Rio
de Janeiro prendeu, em julho, Orlando Cézar Conceição, o Mocotó,
suspeito de chefiar o tráfico de drogas no Morro da Casa Branca, na
Tijuca, Zona Norte do Rio. Mocotó é acusado de tráfico de drogas e
diversos homicídios, e tinha 11 mandados de prisão.
Não é
difícil perceber o prejuízo que sofreria a sociedade se o estado
fosse privado desse recurso tão eficiente para elucidação de
crimes. Como bem destacou o ministro Gilson Dipp, ao se referir a
entendimento do Supremo Tribunal Federal em relação à admissão da
denúncia anônima no processo penal: “Não se pode ignorar a
existência de um fato ilícito somente em função da procedência
do conhecimento deste” (HC 38.093).